In the body of works from the Utopia Botânica series, Fernanda Froes associates the notion of non-place with forest density. Rather than unattainable imaginaries, as conceived by Thomas More in the 16th century, the artist observes the interlacing of tree canopies, the suspension of linear horizons within the forest’s entanglement, and the multiplication of visual planes contained in handfuls of seeds. The negation of place, in this context, reinforces the perception of beings that encapsulate lives, expanding within each seed the promise of multiple and renewable futures. The artist also reflects on forms of kinship grounded in mutual care and unconditional reciprocity. Thus, the forest, the river, the mountain, the winds, the sun, and the earth cultivate a utopia that germinates mothers, grandparents, sisters, uncles, fathers, and children as part of a cosmic family that recognizes itself through shared belonging.
Composed of installations that combine sound, fallen branches from the forest, and cotton fabrics dyed with pau-brasil pigment, the body of work developed in recent years also addresses the perpetuation of botanical life sustained by its own forces—generated through seed dispersal, the penetration of light through gaps in dense vegetation, and soil humidity that renews biodiversity through layers of leaves cyclically shed by centuries-old trees. Through a kind of collage of bioforms that inhabit her imagination, the artist recreates forest ground cover with dormant seeds, summoning hands that dye and bind fragments of fabric.
In the installation at the Jardim Botânico do Rio de Janeiro, one of the exhibition rooms is composed of small dyed fabric fragments tied to the ceiling. In the Salão Nobre of the Embaixada do Brasil na França, in Paris, a floor covered with leaves rises like a trunk without a canopy, composed of the same interwoven forms that cover the ground and nourish the utopian roots of the forest. In each iteration, chromatic variations emerge from the pau-brasil pigment in contact with different reagents, allowing the artist to juxtapose an intense blood-red pulse with the vital radiation of solar oranges and violet tones that resemble sap silently absorbed by the forest’s tangled root systems.
Whether at the Jardim Botânico or at the Embaixada, by evoking density understood as non-place, Froes simultaneously considers the dissolution of geographic meaning, the image of soils enriched by layered leaves that preserve micro-species, and the act of suturing that brings plural lives together in the form of seeds. On a global scale, Utopia Botânica reinforces connections between dispersed and distant forms of life, generating kinships among the water sources of Brazil’s Central-West, the glaciers of Alaska, the plankton of the Pacific Ocean, and the African savanna.
Another important aspect is that this utopian density originates from the artist’s relationship with the largest urban forest in the world. By living alongside remnants of the Mata Atlântica in the city of Rio de Janeiro, Froes deepens her perception of a reality grounded in the interdependence of species. While More conceived the non-place through a model island organized according to principles of rationality and the domination of nature, the artist aligns herself with movements that argue that full citizenship depends on the recognition of the rights of the Earth and its many inhabitants.
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No conjunto de obras da série Utopia Botânica, Fernanda Froes associa a noção de não lugar com densidade florestal. Em vez de imaginários inatingíveis, conforme concebido por Thomas More no século XVI, a artista tem observado o entrelaçamento das copas de árvores, a suspensão de horizontes lineares no emaranhado da mata, e a multiplicação de planos visuais da floresta contida em punhados de sementes. A negatividade relacionada a lugar, neste caso, reforça a percepção de seres que encapsulam vidas, expandindo em cada semente a promessa de futuros múltiplos e renováveis. A artista observa, também, a relação parental que não prescinde de cuidado mútuo e reciprocidade amorosa incondicional. Assim, a floresta, o rio, a montanha, os ventos, o sol e a terra cultivam a utopia que germina mães, avôs, irmãs, tios, pais e filhos como parte de uma família cósmica que se reconhece em mútua pertença.
Constituída por instalações que combinam som, galhadas caídas na floresta e tecidos de algodão tingidos com pigmento de pau-brasil, o conjunto realizado nos últimos anos também observa a perpetuação da vida botânica mantida com forças próprias, geradas pela dispersão de sementes, pela penetração de luz em frestas de mata fechada e pela umidade do solo que renova a biodiversidade com coberturas de folhas que se desprendem ciclicamente de árvores centenárias. Com uma espécie de colagem de bioformas que povoam seu imaginário, a artista reproduz a cobertura de solos com sementes adormecidas, convocando mãos que tingem e atam fragmentos de tecidos. Em sua montagem no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, uma das salas de exposição é composta por pequenos fragmentos de tecidos tingidos atados ao teto. No Salão Nobre da Embaixada do Brasil na França, em Paris, o chão coberto de folhas se ergue feito um tronco sem copa, composto pelas mesmas formas entrelaçadas que cobrem o chão e enriquecem as raízes utópicas da mata. Em cada montagem há uma variação cromática derivada do pigmento pau-brasil em contato com diferentes reagentes, o que permite à artista aproximar o vermelho-sangue que pulsa intensamente com a radiação vital emanada por tonalidades de alaranjados solares e tons de violeta que parecem a seiva absorvida silenciosamente pelo emaranhado de raízes da floresta. Seja no Jardim Botânico, ou na Embaixada, ao evocar a densidade entendida como não lugar, Froes considera simultaneamente a dissolução de sentido geográfico, a imagem de solos enriquecidos por folhas unidas que preservam micro espécies e a sutura que reúne vidas plurais sob a forma de sementes. Em escala global, Utopia Botânica reforça as conexões entre vidas dispersas e distantes, gerando parentescos entre os mananciais do Centro-Oeste brasileiro, as geleiras do Alasca, os plânctons do Pacífico e a Savana africana.
Outra consideração importante é o fato de a densidade utópica ter origem na relação que a artista mantém com a maior floresta urbana do mundo. De fato, ao conviver com a Mata Atlântica remanescente na cidade do Rio de Janeiro, ela fortalece sua percepção sobre a realidade que favorece a interdependência de espécies. Enquanto More concebia o não
lugar a partir de uma ilha-modelo organizada segundo princípios da racionalidade e do domínio da natureza, a artista vem se juntando a movimentos que defendem que a cidadania plena depende do reconhecimento e do direito da Terra e de seus múltiplos habitantes. Com isso, as diferentes versões de Utopia Botânica parecem responder ao estudo de vidas que se conectam, como as árvores que crescem na sombra de outras e dependem de uma trama subterrânea de raízes e fungos; de musgos que vivem da umidade de troncos em decomposição; de sementes dispersadas pelos ventos e pela biodiversidade que resguarda vidas. Do mesmo modo, as linhas de costura evocam sistemas venosos da mata, com ciclos de águas que renovam o solo e mantêm suas correntes fecundas.
Com isso, a densidade que origina Utopia Botânica encontra a visão de More sobre a abolição da propriedade privada em contextos florestais mantidos pelos povos que nelas vivem há milênios. O corpo de obras toma como inspiração o cuidado mútuo e regenerativo de povos e espécies que sabem recuperar vidas, solos e vínculos socioculturais. Daí a costura ser um elemento central em sua prática. Como estandartes suspensos, as pequenas peças costuradas formam corpos frágeis que se reforçam pela conexão, reconhecendo no entrelaçamento a condição para a força e a sobrevivência. Vale notar, também, que os fios que se assemelham a sistemas venosos e aquíferos reduzem a diferença entre cultivar e costurar, adicionando um princípio relacional em sua prática ao considerar a condição pela qual cada forma de vida encontra seu lugar na manutenção da existência do outro.
A montagem do Jardim Botânico também reconhece na linguagem escrita e na oralidade uma força essencial para que contrastes e formas assimétricas de convivência sejam combatidas. Em Floresta apagada / Nomes apagados, a artista conduz o público em território global, pronunciando algumas traduções do pau-brasil em idiomas nos quais ele foi explorado. A instalação sonora faz eco ao passado colonial e às ressonâncias que ele ainda provoca, ampliando as camadas de memória inscritas no nome da árvore. Ao final do ciclo de repetições, o espaço é preenchido por sussurros, como se a voz ofegante ao repetir os nomes apagados guardasse equivalência com a persistência das histórias que se recusam a desaparecer.
Assim, ao aproximar a ameaça de extinção com a identidade nacional, Froes relembra a permanente luta contra a devastação da Mata Atlântica, um dos biomas com menor cobertura remanescente do mundo. Além disso, sendo a origem do nome do país e outrora usado para tingir as roupas da nobreza colonizadora, o pigmento brasilino preserva em sua cor o rastro ardente do encontro entre matéria incandescente e seiva da terra. Não menos importante, ao se entrelaçar com as entranhas do território, Utopia Botânica expõe a condição política, identitária e cósmica do pigmento enquanto alerta a iminência de sua própria extinção. Confundido, em diferentes idiomas, o vermelho-sangue carrega nuanças que conectam a árvore, o cosmos e o pulso da terra. Condensa os raios de sol absorvidos pela planta, sendo a “contribuição brasileira à civilização universal”, conforme o Manifesto Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, uma convocação à inversão das hierarquias coloniais e à valorização de uma poética radicalmente enraizada no território. A um só tempo, a árvore pau-brasil encarna, em Utopia Botânica, poesia, luta e matrizes geradoras de saberes que pulsam na mata. Nesse horizonte que atravessa séculos de história, a extinção da árvore iniciada no período colonial se entrelaça a outras formas de
esgotamento, como se o desmonte das florestas e das relações humanas partilhassem a mesma lógica predatória, corroendo tanto a permanência da vida quanto a dignidade da convivência.
A vibração sonora multidimensional que ocupa a escada de acesso ao pavimento superior do espaço expositivo do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, convive com um pergaminho gigante, com oito metros de altura. Nele a artista repete à exaustão a escrita das traduções pronunciadas. Nos dois casos, o texto e a voz evocam esquecimento e devastação. Ibirapitanga, Palo Brasil, Brazilhout, Brazilwood, Bois de Brésil preenchem o espaço com sussurros e manchas de vermelho-sangue. Em contraponto ao sussurro, com sua textura quase fantasmática, o lado oposto da peça que ocupa o edifício é coberto de elementos gráficos tingidos sobre a grande mancha vermelha que cobre o tecido. Enquanto as vozes exigem do público movimento para alcançar sua evanescência, cada palavra justaposta, com voz e tinta sobre tecido, observa menos o espaço de promessas relatadas por Américo Vespúcio no início do século XVI. Antes, o que a artista observa ao se embrenhar nos trechos das cartas nas quais o não lugar recém-invadido era definido como Mundo Novo, é menos a projeção de riqueza inesgotável que assemelha o território ao “paraíso terrestre”, com povos que vivem em comunhão com a natureza, da qual extraem sua identidade espiritual. De fato, a sobreposição de escrita e a voz embargada ao pronunciar o que dá origem à Utopia Botânica acionam sinais de emergência quanto ao desaparecimento da vida plural presente a meio bilhão de anos na região identificada há poucos séculos como “terra amena e sã”. A experiência gráfica da peça parece encarnar o pouco mais de meio milênio de Novo Mundo (1503). Com isso em mente, é possível alertar para o fato de as diferentes obras da série Utopia Botânica criarem um método poético composto por fragmentos de floresta que funcionam como a imagem de processos de auto-organização biológica. Uma vez conectados, os pequenos organismos coletivos conseguem coordenar atos de comunicação em rede, metabolismo integrado, resistência comunitária e movimento coordenado por negociações permanentes em favor da vida diversa, confrontando, assim, as ameaças monoculturais e os procedimentos que naturalizam a devastação desenfreada.